O trem de ferro e o seu ponto final
Desde
sempre a ferrovia esteve presente em minha vida. Neto e filho de ferroviário, o
trem marcou sua passagem desde há muito em momentos da infância e da vida
adolescente. A região que residi, nesses períodos, era mobilizada econômica,
social e culturalmente pela forte presença da ferrovia. Clubes de futebol,
salões de festas, clubes recreativos e bairros inteiros traziam alguma
referência à ferrovia. Muitos desses espaços foram criados por sindicatos e
ferroviários associados, daí a influência. A economia e a força de trabalho de
muitos cidadãos do interior paulista eram alimentadas pela ferrovia.
Sabemos
que a força motriz da urbanização paulista foi à ferrovia que, desde meados do
século XIX, desbravou o sertão paulista à reboque da economia cafeeira. Desses
feitos, restou-nos uma malha ferroviária que, a despeito de ter se precarizado,
espalhou-se pelo Estado seguindo o recorte provocado pelas fazendas de café. É
por esse motivo que alguns pesquisadores afirmam que no caso de São Paulo
ocorreu inicialmente uma urbanização do interior antes da própria capital. O
dinheiro do café proveu a infraestrutura ferroviária de parte do interior
paulista.
É
impossível, ao conhecermos o sistema de mobilização urbana regional e
internacional europeu, não tecer comparações com o potencial latente brasileiro
herdado do rico período cafeeiro, especialmente o paulista.
Na
Espanha, o sistema ferroviário, que contou com pesados investimentos do Fondo Europeo de Desarrollo Regional (FEDER), dispõe de malhas urbanas
(metrôs), trens de média distância (MD, ligam cidades com distância média de
250 Km) e os trens de longa distância, os TAVE’S, trens de alta velocidade. Um
sistema muito eficiente e que descongestiona as rodovias. Algumas viagens são
longas, mas o conforto do transporte ameniza o cansaço. São trens com um
conjunto de serviços disponíveis aos passageiros, tais como: banheiros, leitos,
restaurante, televisão etc. É possível tomar um belo café da manhã, ver o
nascer do sol e curtir o barulho do trem deslizando pelo caminho de ferro.
Imagino
que a infraestrutura ferroviária do Estado de São Paulo suportasse uma
modernização que permitisse o transporte de passageiros com trens de média
velocidade (até uns 90km/h). Os investimentos não seriam pequenos, tenho noção
disso, mas a reestruturação atenderia um fluxo de passageiros que viabilizaria
qualquer intenção capitalista.
Araraquara
e Rincão, cidades do interior paulista e minhas terras de referência, têm uma
história particular no que diz respeito ao transporte ferroviário de
passageiros. No ano de 1898, foi construída uma via em bitola métrica ligando
Araraquara a Itaquerê (atual distrito de Bueno de Andrada). Foi prolongada aos
poucos até atingir, em 1912, São José do Rio Preto. Somente em 1934, atingiu
Mirassol para, apenas no anos 1940, seguir avançando até Presidente Vargas, às
margens do Rio Paraná, em 1952. Em 1955, foi entregue o primeiro trecho em
bitola larga, retificado, entre Araraquara e São José do Rio Preto, atingindo
finalmente Presidente Vargas em 1962. Em 1968, a empresa passou a ser
administrada pela Companha Paulista de Estada de Ferro S/A, praticamente
desaparecendo os trens de passageiros que partiam de Araraquara, agora sempre
seguindo diretos de São Paulo na maioria das vezes com equipamento da Cia.
Paulista. Em 1971 foi tudo incorporado à FEPASA S/A. No ano de 1998, a linha
foi unida à da FERRONORTE, em território mato-grossense, mas apenas para trens
de cargas. As transformações foram intensas durante o século XX, diminuindo o
interesse no transporte de passageiros e privilegiando o de cargas.
ESTAÇÃO DE RINCÃO, 1980-1990. CRÉDITO DA FOTO: ACERVO "RINCÃO SEUS RINCÕES", TADEU SELMINI
Mesmo
assim, o cheiro do trem ainda se faz presente em minha memória olfativa.
Máquinas enormes no Depósito de Locomotivas de Rincão; chegar perto delas
causava frio na barriga. Barulho ensurdecedor, ferramentas enormes, pessoas,
mecânicos, palavrões. Aquele ambiente era mágico, muitas locomotivas, todas com
histórias de madrugadas pelos trechos da estrada de ferro do interior paulista.
Frio, sede, fome e a saudade da família que esperava sempre ansiosa pela
chegada do maquinista, mesmo que tarde da noite. Marmitas pelas madrugadas,
cheiro de arroz, chuchu com carne moída, salada, água na moringa e vidas,
muitas vidas que se fizeram com o trabalho ferroviário.
Recordo-me
da história que fez Milton Nascimento escrever a música “Ponta de Areia”. “Ponta de areia, ponto final. Da Bahia – Minas,
estrada natural que ligava Minas ao Porto, ao Mar. Caminho de ferro mandaram
arrancar.” O ano era o de 1966, o governo militar mandou desativar o trecho
de estrada de ferro que ligava Bahia a Minas e Minas ao mar. Desde esse
momento, várias cidades que viviam em função da ferrovia e que tinham nela o
seu único meio de comunicação ficaram esquecidas. Rincão sofreu o mesmo
processo, uma cidade que inteiramente vivia em função da ferrovia, viu-se
aleijada de seu maior bem, de seu maior patrimônio quando da privatização da
malha ferroviária paulista. O Depósito de Locomotivas foi completamente
desmontado, hoje não restam nem vestígios, só ficaram os trilhos. A Estação de
Trem adaptou-se às novas serventias, hoje é a Prefeitura Municipal. Pátio com
relógio, guichês para venda de passagens, tudo esquecido. O trem não é mais
símbolo da modernidade, da comunicação – que se faz atualmente na sua versão
virtual – entre cidades e a capital.
Caminho
de ferro mandaram arrancar. As coisas deveriam ser dimensionadas não apenas
pelo seu valor econômico, chamado também de viabilidade econômica, mas pelo seu
valor simbólico enquanto patrimônio de um povo. Patrimônio que conecta coisas,
pessoas, valores, sentidos e cheiros. Cheiro do trem, classe econômica,
guaraná, lanche de pão com mortadela. Casas esquecidas. Viúvas nos portais.
Portas e janelas, quintais. Locomotiva não canta mais. Praças vazias,
aposentados de brancos cabelos esperando o apito do trem que, no passado, deu o
ritmo e o significado de suas vidas. A vida é um verso sem sentido? Mas com que
música?
Notas:
- Crônica extraída do livro: TOLEDO, Rodrigo Alberto. Salamanca por diversas lentes – um passeio
fotográfico pelas memórias em Salamanca – Espanha. Salamanca. São Carlos:Editora RIma2012).
- Rodrigo Toledo é Araraquarense (salmantino e rinconense), Especialista em Gestão
Pública, Mestre em Sociologia e Doutor em Ciências Sociais pela UNESP e Pòs-Doutorando em Ciências Socais, Campus de Araraquara. Foi bolsista com período sanduíche na Universidade de
Salamanca (Espanha), Instituto de
Iberoamérica e Centro de Estudios
Brasileños, pela agência governamental CAPES.
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