Ideário urbano do século XX: as cidades construindo as propostas urbanas
Sanitarismo, concepção pendular: entre a Teoria Mesológica e a Teoria Microbiana
Rodrigo Alberto Toledo
Doutorando em Sociologia com período sanduíche na Universidade de Salamanca, USAL, Instituto Iberoamerica e Centro de Estudos Brasileiros, tendo como objeto de pesquisa o processo de planejamento urbano da cidade de Araraquara e sua relação com a FAU-USP e processos participativos na formulação de políticas públicas urbanas. Tem Mestrado Acadêmico em Sociologia e Especialização em Gestão Pública e Gerência de Cidades (2001) pela UNESP-FCLAr-PPG. Licenciatura Plena e Bacharelado em Ciências Sociais pela UNESP-FCLAr. Foi presidente da ONG Araraquara Viva e coordenou inúmeros projetos socioambientais que foram aprovados pelo Ministério da Cultura, Lei Rouanet. É bolsista do programa CAPES.
Desde o século XIX[1], as cidades como um todo, não só no Brasil, vinham sendo problematizadas em diversos aspectos. Os médicos exerceram papel importante nesse processo, por levantar uma de suas questões centrais: a higiene. Engenheiros Sanitaristas do final do século XIX vieram a apresentar e concretizar de forma mais centrada e cabal as questões e soluções que os médicos estavam elaborando desde o início desse século. Classificamos em três as principais questões urbanas elaboradas nesse período: a higiene, a circulação e a estética. O fator econômico perpassava por todas elas.
Para Damasceno (1996),
Os médicos propunham-se a dar respostas adequadas a uma das principais questões apresentadas pela sociedade: a saúde e a qualidade de vida dos centros urbanos, num momento em que o crescimento das cidades provocava a degradação das condições de vida.
Segundo ainda Damasceno (1996), a medicina desse período não se restringia aos aspectos clínicos da saúde, mas também a um espaço social, que deveria ser estudado juntamente com o espaço físico. Era essa a perspectiva utilizada tanto por médicos quanto por reformadores do século XIX, ao tentar entender os problemas da cidade. Para eles, os males das cidades estavam relacionados às emanações pútridas, os chamados miasmas, originados de matérias orgânicas em decomposição existentes em pântanos, águas estagnadas, esgotos, ar viciado das habitações coletivas e da falta de circulação de ar.
Introduz-se, por conseguinte o conceito de salubridade, cuja premissa básica e fundamental era a de que todos os fluidos haveriam de circular. A questão da higiene estava relacionada à reprodução da força de trabalho.
As epidemias que assolaram as cidades brasileiras a partir do século XIX impuseram mudanças em suas organizações. Paralelamente a essas epidemias, as mudanças sofridas pela sociedade brasileira consubstanciadas na formação de um exército de mão de obra assalariada levaram a uma crescente preocupação com a manutenção/sobrevivência do trabalhador livre, principalmente o estrangeiro, uma vez que as enfermidades colocavam em risco o fluxo migratório.
Para Fernandes (1995):
“(...) grande parte do raciocínio que justificava a importância do saneamento das cidades se prendia precisamente ao cálculo econômico, sendo comum várias referências à economia realizadas pelo fato de se baixar em um ou dois pontos a taxa de mortalidade nas cidades, demonstrando cabalmente a necessidade econômica do higienismo”.
O pano de fundo dessas questões havia sido um debate teórico-científico entre os higienistas do final do século XIX. Um grupo adotava a teoria do sanitarismo mesológico, enquanto que o outro adotava o microbiano, vejamos a seguir.
Os problemas relativos à circulação e à estética, podem ser analisados dentro da mesma concepção. Ou seja, a circulação estava diretamente ligada ao escoamento da produção, assim como ao acesso dos trabalhadores a suas áreas de trabalho, estando, portanto, associada à mobilidade de capital.
Contudo, entendemos que ocorre uma infraestruturação de determinadas zonas da cidade em detrimento de outras. Essa concepção dialoga diretamente com os planos de melhoramentos que determinaram as transformações pelas quais sofreram o centro das principais cidades brasileiras no início do século XX. Naquela época, o enfoque era a circulação: de pessoas, mercadorias e fluidos.
A estética estava relacionada ao aspecto que se pretendia formar para essas cidades: cidades civilizadas, higiênicas e modernas. Essas características poderiam possibilitar contatos financeiros efetivos com o capital internacional, dessa forma, em grande medida, o que estava em jogo era o imaginário de cidade que se pretendia “comercializar”.
Essas cidades precisavam se transformar em espaços atrativos para o capital internacional, pois o novo papel que o Brasil ocupava na divisão internacional do trabalho demandava uma visão mercadológica do espaço urbano.
Segundo Costa (2003) citando Andrade (1992),
“A cidade como manufatura desenvolveu-se como o avanço do processo de urbanização do capitalismo industrial (...). Na virada do século XIX para o XX, com a cultura urbanística oscilando entre a cidade como obra de arte e a cidade como manufatura, determinações que delimitavam campos do conhecimento e disciplinas distintas. Para alguns urbanistas de então, entre os quais Camillo Sitte, tratava-se de conciliar as dimensões técnica e estética na construção das cidades”.
Esses capitais, segundo Szmencsány (1993), não apenas foram capazes de colaborar entre si como também mostraram-se aptos a obter o apoio do Estado na provisão de serviços públicos essenciais, na regulação do parcelamento das terras com venda de lotes e na criação de infraestrutura física dos sistemas de transporte e saneamento.
A cidade, portanto, era ela própria uma mercadoria. Esse aspecto é interessante, pois revela que a questão estética era extremamente forte, a exemplo de Sitte e Haussmann. Já a vertente americana estava, ao que tudo indica, mais associada à questão do capital, da interação entre o público e o privado e da administração. São Paulo se insere nessa dinâmica sem, entretanto, negar a nítida influência europeia que sofreu.
O debate do período sobre higiene, circulação e estética pode ser entendido como um desmembramento dos questionamentos entre a função – papel que desempenhava a cidade em questão no contexto em que se inseria -, e a forma, ou seja, seu desenho.
Não podemos nos esquecer que um dos instrumentos dessa época era a legislação. Os códigos de posturas e as leis higienistas decretadas no período apontam para isso. Paralelamente ao debate produzido sobre a necessidade de a população promover uma mudança de mentalidade existia uma corrente que defendia que as mudanças de hábitos, dos costumes e das crenças vigentes no período só ocorreriam através de uma ação coercitiva da lei. Contudo, para além dessa constatação, esses instrumentos se constituem como os primeiros dispositivos de normalização da construção civil, de certa forma são antecedentes dos atuais códigos de obras (códigos de posturas). O debate teórico-conceitual e prático revela as propostas do sanitarismo no final do século XIX e início do século XX, ou seja, é a questão do saneamento de cunho mesológico e o de cunho microbiano.
Em Andrade (1992), identificamos uma conceituação a respeito da teoria mesológica e a teoria do contágio que busca explicar:
“(...) as condições do meio que favoreciam as doenças, bem como o modo delas se propagarem. Assim, após a descrição da topografia sanitária das cidades assoladas pelo mal, segue-se o registro dos pontos de passagem ou estadia dos doentes, bem como a condenação de reuniões e cerimônias coletivas. Revela-se, assim, que o controle das epidemias passará por uma ciência do território, dependerá de uma política geopolítica e será exercido sobre grandes massas populacionais, anunciando modernas formas de controle político”.
Os métodos utilizados para controle das epidemias contava com a criação do cordão sanitário, a quarentena, as fumegações, as fogueiras aromáticas, as lavagens de cal branca e as rezas. Às vezes, quando a moléstia já estava instalada na cidade, a solução era abandoná-la.
A Engenharia Sanitária do início do século XIX tinha como tarefa impedir o contágio em uma situação de amontoamento. Por assim ser, não será à toa a presença de higienistas e sanitaristas entre os principais formuladores das concepções organicistas da cidade, com frequentes analogias entre a saúde da cidade e a do corpo humano. As intervenções urbanas da Engenharia Sanitária estavam pautadas no objetivo último de fazer com que as águas circulassem de maneira salubre. Era preciso ordenar o seu fluxo e conduzi-las aos esgotos.
No entanto, a teoria que mais se articulou no século XIX e que se constituiu como a mais legitimada e aceita no decorrer do século XX foi a microbiana. O que vai promover um intenso debate entre a teoria mesológica e a microbiana foi a constatação de Loius Pasteur de que os micróbios transmitiam as doenças e não os miasmas, como era até então difundido e aceito.
Segundo Costa (2003).
“Ao atribuir a fermentação a microorganismos, Pasteur conseguiu, pela primeira vez na história da medicina, precisar a casa das doenças, assim como desenvolver mecanismos para evitar tais enfermidades: as vacinas. No Brasil, o principal seguidor dessa teoria foi Oswaldo Cruz. Foi sob sua adminstração que a Diretoria Geral de Saúde Pública, do governo de Rodrigues Alves (1902-1906), no Rio de Janeiro, protagonizou, segundo Sevcenko (1998), um dos episódios menos compreendidos da história recente do País: a Revolta da Vacina”. (p.90)
O tifo, a tuberculose, a lepra e a varíola assolavam o Rio de Janeiro e colocavam em risco a economia do País. Diante desse problema, Oswaldo Cruz recebeu plenos poderes do governo federal para sanear a cidade. O que foi feito com muita competência e organização, mas também com muito autoritarismo, introduzindo campanhas sanitárias de cunho nitidamente militar.
Os objetivos dos planejadores do final do século XIX e início do século XX eram, segundo Campos (1998), “assegurar condições mínimas de vida para uma população em rápido crescimento, normalizar a ocupação e o uso dos espaços e equipamentos e adequar a cidade aos negócios, às instituições e ao poder burguês”. Nesse sentido, a normatização da ocupação e do uso do solo era o aspecto mais importante dos planos realizados em São Paulo. Nessa perspectiva, a teoria mesológica ganhava outro sentido e mais adeptos, pois, no embate com a teoria microbiana, justificava cientificamente a dominação do espaço.
Por fim, depreendemos que não havia tanta diferença entre as medidas a serem tomadas e os resultados obtidos. Enquanto a teoria microbiana atacava as causas, a teoria dos meios atacava não a doença em si, mas as condições propícias a sua manifestação. Assim, para o planejamento urbano, não havia tanta diferença em ser seguidor de uma ou de outra teoria.
A formulação historicista de Camillo Sitte
O livro de Camillo de Sitte, A Construção das Cidades Segundo Seus Princípios Artísticos, foi imediatamente recebido pelos profissionais da área. Segundo alguns autores, o livro era uma resposta crítica às obras que o Barão de Haussmann executou em Paris no século XIX e, em um patamar mais amplo, como crítica à forma como as cidades vinham sendo erguidas naquela época.
O livro utiliza um amplo aporte histórico como forma de compreensão dos princípios que guiaram, no passado, a construção das cidades e que deveriam ser apreendidos em sua essência. A análise histórica assume uma opção metodológica para Sitte que revela uma essência estético-antropológica no construir as cidades, na qual as dimensões tácitas do espaço são determinantes para o sucesso da empreitada.
Sitte logo na introdução evoca Aristóteles e Pausânias – segundo os filósofos gregos não se pode chamar de cidade um lugar onde não existam praças e edifícios públicos -, ao defender que a construção da cidade deve ser pensada não apenas como uma questão técnica, mas antes estética.
Para Sitte, a arte poderia ceder lugar, quando fosse o caso, aos aspectos de higiene ou a outros que se apresentassem como prioritários, justificando sua pesquisa como forma de apresentação dos conhecimentos antigos no tratamento do espaço público.
As praças deveriam se relacionar com as ruas e com as edificações de maneira que as ruas ficassem perpendiculares à linha de visão. Ele era contra espaços vazios, contrapondo-os aos espaços com a presença de edifícios e obras de arte que, dependendo da distribuição, poderiam causar sensação de fechamento, de aconchego, o que ele identificava na cidade antiga e que gostaria de conservar. Critica as ruas retas, que só atenderiam à circulação, não dando a devida atenção ao fator estético. As alamedas e jardins, só encontram bons resultados nos bairros residenciais, segundo Sitte. A área central da cidade mereceria especial atenção, pois a vegetação mal localizada atrapalha a apreciação das obras principais. Os jardins modernos, abertos, fogem aos objetivos da higiene a que se propõem, principalmente durante o verão, quanto a livre circulação dos ventos espalha a poeira e o calor, e as novas avenidas e os novos requisitos da circulação e da economia são incompatíveis com as antigas características dos espaços públicos.
Costa (2003) aponta que no final do livro, Sitte apresenta uma sitematização das ideias anteiormente expostas, sugerindo um método projetual: primeiro um estudo das condições de contorno e, segundo, uma resposta a essas condições. É quando defende a necessidade de um plano conjunto, o qual chama de programa a ser seguido. Este constaria de dois pontos fundamentais: a) estudo do possível crescimento da cidade (horizonte de 50 anos), denotando certa separação de funções (circulação, residência, vilas suburbanas e zonas destinadas a comércio e indústrias); e b) “com base nessas informações indispensáveis, deveriam ser definidas a quantidade, as dimensões e a forma aproximada dos edifícios públicos programados”.
A cidade-jardim de Howard
Em 1898, o inglês Ebenezer Howard escreveu um lovro intitulado Tomorrow: A Peaceful Path to Real Reform. Esse livro foi reeditado em 1902 so o título Garden Cities of Tomorrow. Howard propunha a aquisição de uma gleba de 6000 acres, em distrito agrícola, para ser conservada sob propriedade única. Uma pequena parcela da área seria destinada a construções, enquanto o restante constituiria um cinturão permanente de parques e sítios. A cidade deveria possuir, em sua are, indústrias suficientes para proporcionar emprego aos seus habitantes, estabelecendo-se um limite para a população total. Letchworth foi a primeira cidade jardim inglesa, estabelecida em 1903, a 32 milhas de Londres. As cidades jardins inglesas exerceram grande influência sobre o planejamento das áreas residenciais suburbanas de alto padrão e das comunidades suburbanas dos Estados Unidos.
Por estar mais preocupado com a estrutura e a concepção de uma sociedade, a cidade jardim de Howard ainda não é uma cidade propriamente dita, mas uma estrutura que, como ele afirma, deverá ter sua forma estudada por arquitetos. Ela a projetava: radiocêntrica, com a presença de um parque central, de avenidas e boulevares fartamente arborizados, edifícios públicos, mercado central, habitação unifamiliar – sendo que as condições higiênicas deveriam ser controladas pela municipalidade -, com tipologia arquitetônica variada (algumas casas seriam providas de jardins comuns e cozinhas cooperativas) e localização intimamente ralacionada ao local de trabalho.
A proposta de cidade jardim de Howard apontava, ainda, três aspectos importantes: a questão fundiária, o papel das ferrovias e o desenho da cidade.
A cidade jardim de Howard é uma resposta à teoria de mercado e da renda da terra, formuladas por economistas como Von Thünen, neoclássico, e Ricardo, ligado à economia política. Em Ricardo identificamos que a renda fundiária era interpretada como sendo uma manifestação particular da riqueza social. As classes sociais não eram vistas pelo acúmulo de riqueza, mas por relações econômicas. Para ele, os latifundiários não produzem, mas recebem parte do lucro, em razão do direito à propriedade. A riqueza produzida no campo, portanto, não era obtida pelos trabalhadores, mas, sim, pelos proprietários da terra.
Von Thünen identifica a riqueza como algo escasso. Nesse sentido, sua teoria da renda da terra tem por objetivo explicar a melhor forma de utilizar essa escassez. Para ele, o proprietário é um ser passivo e o mercado seria o melhor locador do uso do solo. A renda seria a expressão da concorrência espacial.
Na realidade, Howard era abertamente contra a organização social/produtiva capitalista. É razoável pensar, dessa forma, que a sua cidade jardim venha a atacar extamente essas formas de apropriação de renda da terra, de acúmulo de riqueza, pois ao propor que a terra seja bem comum e que os lucros advindos de sua valorização (seja pela transformação do solo agrário em urbano, seja pela infraestruturação da cidade ou, ainda, pela produção agrária) sejam revertidos para a própria sociedade (seus reais proprietários), ele está, por um lado, se contrapondo à lei do mercado e, por outro, negando o acúmulo do capital por apenas uma classe social.
Outro aspecto a ser destacado é o papel estruturador do espaço desempenhado pelas ferrovias nas cidades jardins. Para Lins (1998), na cidade jardim de Howard:
“O limite externo que define o plano de transição entre a cidade e o campo é caracterizado elo anel ferroviário (...) a ferrovia, nesse caso, é definidora do espaço urbano, como se a área por ela ocupada formasse um anel divisório, quase como uma muralha. Junto à faixa de domínio da estrada de ferro estão dispostas as fábricas e os depósitos, reforçando a divisão espacial cidade-campo. (...) a relação da cidade jardim com seu território é estabelecida pela via férrea. Assim também é tratada a ligação dos diversos núcleos urbanos e, o que seria a capital, numa rede de cidades jardins (...)”.
Lins aponta a ferrovia como elemento estruturador, capaz de dar unidade ao espaço, isto é, ligar áreas distintas, possibilitar a circulação de pessoas e mercadorias, além de ser um meio de transporte coletivo.
Por fim, quanto ao aspecto formal, seu desenho propriamente dito, Howard (1966), apresenta os diagramas como úteis para acompanhar a descrição da cidade em si. Entretanto, seu desenho não é uma forma fechada, podendo ser amplamente modificado. A maior preocupação dele era com o conceito de cidade e não com a forma, podendo esta adquirir outra configuração, segundo seu projetista. Concluímos que para ele a concepção de sociedade é mais forte do que o desenho da cidade.
Em uma nota de rodapé de seu livro, Howard relata sobre o desenho das cidades, fazendo alusão ao crescimento das cidades americanas.
“É comum pensar que as cidades dos Estados Unidos São planejadas. Isso somente é verdadeiro no sentido mais inadequado. As cidades americanas certamente não constituem intrincados labirintos de ruas cujas linhas parecem ter sido traçadas por vacas (...). Algumas ruas são traçadas, e à proporção que a cidade cresce, vão sendo estendidas e repetidas com uma monotonia raramente interrompida. Washington é uma magnífica exceção a esse padrão de arruamento, mas mesmo essa cidade não está planejada com a finalidade de assegurar a sua população acesso fácil à natureza, pois seus parques não são centrais nem suas escolas e outros edifícios estão distribuídos de forma científica”.[2]
O aspecto que mais chamava a atenção de Howard era a acessibilidade das pessoas à natureza e aos edifícios públicos e o zoneamento funcional, assim como a dimensão estética que o arruamento das cidades deveria, evitando o geometrismo.
Howard preconizava um desenho de cidade radiocêntrica, sendo limitadas por ferrovias, presença de um cinturão verde, parques e ruas arborizadas. O zoneamento funcional, com restrições sobre o uso do solo urbano, a altura das construções e sua ocupação na malha urbana da cidade, também era um importante aspecto na concepção das cidades jardins. O desenho das ruas teria que ser sinuoso, evitando o geometrismo, e há unidades de vizinhança. A moradia operária sintetizava a ideia de construção de uma nova comunidade com envolvimento da sociedade local. A propriedade da terra era da comunidade e os lucros advindos da valorização das terras eram revertidos para sua infraestrutura.
As ideias de Howard chegaram ao Brasil, mais precisamente a São Paulo, por volta da década de 1910, por intermédio da Companhia City, empresa de capital estrangeiro de especulação imobiliária que construiu uma forte relação com a Prefeitura. Em São Paulo não houve a construção de cidades jardins, mas a construção de bairros jardins. A região escolhida da cidade foi o quadrilátero sudoeste, que contou com projetos de Barry Parker (propondo ou construindo) para os bairros do Pacaembu, Jardim América, entre outros. Entretanto, nestes empreendimentos aparecem apenas algumas ideias de Howard, tais como: o nome da cidade, com forte conotação simbólica, a forte presença de jardins, de avenidas arborizadas e as condições sanitárias-higiênicas.
Vejamos alguns exemplos das intervenções urbanísticas da Companhia City em São Paulo.
A região do bairro Jardim América, área delimitada na imagem abaixo, era pouco valorizada e foi escolhida pela Cia. City, que já enxergava que, com o ritmo de crescimento de São Paulo, a cidade se expandiria naquela direção. A Cia. City, antevendo as possibilidades de ganhos imobiliários, investiu nas melhorias que atrairiam os compradores, interessados no inédito conceito urbanístico que a empresa implementaria pela primeira vez na América do Sul, a cidade-jardim. Era a primeira vez que um bairro seria construído de acordo com um planejamento prévio e seguindo a normas urbanísticas definidas pelo americano Ebenezer Howard. A Cia City foi a responsável pela abertura da Avenida Anhangabaú, atual Nove de Julho, assim como seu prolongamento até o Jardim América na década de 1930, proporcionando à cidade um marco urbanístico característico da proposta de cidade jardim, sendo hoje uma das mais utilizadas vias de circulação.
O bairro do Butantã é outro exemplo de intervenção urbanística da Cia. City que buscou, novamente, incorporar alguns conceitos da proposta da cidade jardim. A região só começou a desenvolver-se no fim do século XIX, principalmente motivada pela fundação do Instituto Butantã, em 1899. A área que deu origem ao bairro era de propriedade da família Vieira de Medeiros que a vendeu para a Cia. City em 1915. Uma grande área, com mais de 2.300 mil m² e que começou a ser urbanizada pela companhia por volta de 1930, dando origem ao bairro do Butantã, área em destaque na imagem cidade de São Paulo na página seguinte.
A experiência francesa
A experiência francesa é a mais significativa na constituição do que denominamos urbanismo brasileiro. Destacaremos apenas dois autores: Haussmann e Agache.
Entretanto, das intervenções em aglomerados existentes, com a finalidade de saneá-los, objetivando transformá-los segundo as necessidades de seu tempo, as grandes intervenções empreendidas por Haussmann em Paris foram as que mais se notabilizaram.
Segundo Toledo (1996), o Barão de Haussmann
“(...) promoveu uma operação extensiva de reorganização, homogeneização e saneamento da cidade, que implicaram excessivos trabalhos de demolição. Esse fato lhe rendeu, por várias vezes, críticas, já que grande parte dos edifícios e do tecido urbano medieval da cidade foram sacrificados. As novas construções utilizaram, em sua maioria, um repertório eclético sem muita originalidade, mas discreto e regular. Esse fator, somado ao apego à linha reta para abertura de grandes avenidas, foi interpretado como meio de sanear a cidade e, também, como estratégia para facilitar a ação armada, em caso de revoltas. (...).
As decisões baseavam-se num pormenorizado levantamento e estudo da situação existente em toda a cidade e na consideração do fator ‘tempo’, analisando, dessa forma, a história do local e, igualmente, dados estatísticos para sua projeção futura. Seus objetivos eram muito mais abrangentes do que os de seus contemporâneos, uma vez que ele encarava o espaço urbano como um organismo que, para operar com funcionalidade, não poderia ser apenas a justaposição de suas partes. Sua forma de atuar estava alicerçada, principalmente, no estabelecimento de um sistema de circulação e de aeração, onde a questão do fluxo de tráfego era prioritária.” (p.110).
No Brasil a mais conhecida e estuda influência do urbanismo francês seria a sofrida pela cidade do Rio de Janeiro. A primeira intervenção mais ampla ocorreu nessa cidade entre 1902 e 1906, durante a gestão de Pereira Passos[1].
Segundo Stuckenbruck (1996), Passos teve um papel importante, na medida em que incorporou a concepção de reforma urbana ao poder estatal e sua consequente objetivação em obras públicas.
Para Stuckenbruck (1996),
“Em Passos, o que se faz é abrir ruas, praças, alargar avenidas, construir um rígido código de posturas, regulamentando o uso do espaço urbano – mas não há um projeto para a cidade como um todo, não técnicos especializados na cidade, não há um campo definido de atuação para o futuro profissional urbanista -, não há urbanismo! O que há são intervenções pontuais e localizadas na malha urbana, orientadas pelos princípios do higienismo e da ciência positiva”. (p. 107).
Em Sevcenko (1996), ainda sobre esse período,
“ (...) a imagem de progresso se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia; quatro princípios fundamentais regeram o transcurso dessa metamorfose: a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória da sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense”. (p.106).
Completando com Pechman (1996),
“Entre nós, as ideias urbanísticas tiveram muito mais um caráter de resolução de probelmas técnicos e intervenção da cidade do que o de uma política de reforma urbana baseada no pressuposto da necessidade de planejamento da cidade que enquadrasse seus problemas sociais derivados de uma má urbanização. Aqui a experiência urbanística se esgota na regeneração do corpo urbano e na hierarquização do corpo social, sem necessitar negociar melhorias nas condições de vida dos grupos, nas suas práticas cotidianas, nas normas sanitárias.” (p.105).
É no bojo desse debate que ocorre o episódio da Revolta da Vacina no Rio de Janeiro. Estimulada, principalmente, pela execução de uma proposta urbanística que se impunha à cidade do Rio de Janeiro, sem levar em conta o corpo social, sem negociar melhorias nas condições de vida dos grupos, em fim, de forma arrogante.
Na década de 1920 o discurso se altera. A cidade passa a ser objeto de intervenções que abarcavam sua totalidade e, para isso, intensifica-se a necessidade de um corpo técnico especializado que contasse com o respaldo do status científico. Para Stuckenbruck (1996)
“o que caracteriza esse momento é uma mudança de conteúdo no discurso sobre o urbano, marcada pelo surgimento de novos profissionais especializados e pela concepção global da cidade, utilizando-se da metáfora do organismo, emprestada do saber médico”. (p.111).
O debate sobre os destinos das cidades ganhava o interesse dos mais variados setores da sociedade, desde engenheiros e técnicos da prefeitura até médicos sanitaristas, passando pela opinião pública. O poder público, nesse contexto, produz clara política de urbanização da cidade, como não poderia de ser, repleta de interesses elitistas. Na segunda metade da década de 1920, foi realizado um plano de urbanização para a cidade do Rio de Janeiro, o qual veio a ser conhecido como Plano Agache. Esse plano consistia em grandes avenidas arborizadas e áreas com jardins para o centro. Era dado enfoque da cidade nas questões de saneamento básico, água, esgotos e drenagem, escoamento do lixo e das inundações e circulação como uma das principais funções da cidade. Propunha, ainda, a implantação de um sistema metroviário e a criação de áreas habitacionais com deslocamento da população de baixa renda para os subúrbios, e os de alta para os bairros-jardins na Zona Sul. Para Abreu (1992), o Plano Agache constitui o exemplo mais importante da tentativa das classes dominantes da República Velha de controlar o desenvolvimento da forma urbana carioca.
As análises realizadas apontam que efetiva-se uma corrente do pensamento urbanista no Estado de São Paulo com nítidas influências das concepções do sanitarismo, da visão historicista de Camille Sitte, da cidade jardim de Howard e da concepção francesa e americana. No próximo tópico dimensionaremos a contribuição das concepções que, efetivamente, contribuiram na formulação do que classificamos de corrente do pensamento urbanístico paulista. Salientamos, entretanto, que as três primeiras concepções, a sanitarista, a historicista de Camille Sitte e a cidade jardim de Howard, compõe um quadro de intervenções urbanas, na cidade de São Paulo e, visivelmente, em Araraquara, anteriores à solidificação de uma concepção totalizante de cidade. Em outras palavras, as três primeiras concepções serviram de inspiração para intervenções pontuais nessas cidades, contribuindo, ainda mais, para a solidificação de um processo de exclusão urbana.
A construção de propostas urbanas que se cristalizaram em planos, agora voltados para o todo, está vinculada com a formação de aparato conceitual que desse conta, a partir do ano de 1954, quando São Paulo assume a condição de primeira metrópole brasileira, dos atributos da cidade cuja abordagem tornou-se praticamente inacessível ao urbanismo paulistano. Naquele momento, São Paulo desafiava o urbanismo e os seus mais experientes profissionais. Portanto, foi a partir da década de 1950 que se construiu um ponto de inflexão na trajetória das relações entre a metrópole e o urbanismo que já assumia sua nova versão: a de planejamento urbano.
A constatação de Tafuri (1985) ao analisar as relações entre metrópoles europeias e o urbanismo na segunda e terceira décadas do século XX, mostra que tanto a metrópole quanto o urbanismo viviam condições de convívio inviável. Entendemos que São Paulo, guardada as devidas proporções, também vivia essa relação conflituosa e contraditória entre metrópole e urbanismo. O centro da argumentação de Tafuri é que a metrópole do desenvolvimento não aceita “o equilíbrio no seu seio”. Na cidade de São Paulo do período de 1950 a 1960 – metrópole do desenvolvimento -, o urbanismo moderno, tal como o qualificou L. Benevolo, não encontrava seu lugar na desenfreada caminhada da metrópole do progresso.
Ao percorrermos e analisarmos as diferentes propostas de intervenção na metrópole apresentadas a ideia de cidade, contida em cada uma delas, pretendíamos demonstrar os limites conceituais que cada modelo de reflexão e intervenção apresentava. O embate conceitual entre as ideias defendidas por Luiz Anhaia Mello e Francisco Prestes Maia, ambos ex-prefeitos de São Paulo e profissionais envolvidos com estas duas dimensões, a conceituação e a prática urbanística, representou um ponto notável do pensamento urbano em São Paulo. (Meyer, 1991).
[1] Para Andrade (1993) a intervenção de Pereira Passos no Rio de Janeiro visava criar uma imagem de cidade europeia em pleno trópico. No entanto, tiveram caráter pontual e fragmentário, sem pretender dar uma resposta ao problema do crescimento da cidade a médio ou longo prazo. Ou seja, bastaram os princípios de embelezamento inspirados na tradição neoclássica, com alargamento de algumas ruas e o saneamento de quarteirões insalubres, sem a necessidade de um plano enquanto elemento de previsão do destino da cidade.
[1] Segundo Costa (2003), a partir do século XVIII, principalmente na Europa, a cidade antiga (medieval) sofreu uma série de críticas, sobretudo quanto à higiene e à circulação. Com o alastramento das pestes, a grande ansiedade do século XVIII foi a construção de um objeto que explicasse a morte, nesse sentido, a preocupação com a busca de um novo saber, o qual desembocou no higienismo.
[2] Howard (1996) nota 21. Na nota 22, Howard comenta o crescimento das cidades inglesas, operadas por proprietários que interviam de forma pontual e especulatória na cidade, destacando a necessidade de planos gerais. Vale lembrar que Howard morou quatro anos em Chicago, nos Estados Unidos, portanto, é possível que ele tenha conhecido de perto o projeto de Washington.
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