Anhaia Mello X Prestes Maia: do embate de ideias à formulação de uma corrente urbanística

Este texto faz parte da tese de doutoramento  e busca analisar o processso de formulação de uma corrente urbanista paulista.


Analisar a formulação de uma corrente urbanista é dimensionar a influência americana no pensamento urbanístico do Brasil e, especialmente, de São Paulo. Comumente a influência americana é apontada a partir de 1920-1930, quando Anhaia Mello e Prestes Maia passam a citar uma série de autores e planos americanos como referências para suas reflexões, sobretudo quando discutiam a verticalização, ou não, da cidade de São Paulo (Somek, 1997). Prestes Maia e Anhaia Mello baseiam-se no zoning de Nova York para desenvolver leis em suas atuações na prefeitura paulista.
O contato de Anhaia Mello com a proposta americana de cidade, ao que tudo indica, iniciou com a aquisição do livro Land Planning in the United States for City, State and Nation[1], de Harlean James, escrito em 1926 e adquirido por ele em 1927. De forma geral, o livro aborda o planejamento moderno nas cidades americanas no momento em que ele estava acontecendo. O capítulo intitulado Early land policies in layout[2]  trata do The national sistem of survey[3], das rotas de estradas. Ao discutir o planejamento das cidades americanas, o autor parte da questão das terras públicas não ocupadas. Segundo ele, na república é criado um pesquisa, a fim de reconhecer e descrever as terras para que nelas fosse estimulada a colonização. Na verdade, mesmo que de forma não muito clara, o autor estabelece uma relação entre a ocupação do território (planejamento territorial) e as cidades (planejamento urbano). Por conseguinte, nos Estados Unidos, afirma o autor, ambos fazem parte de uma mesma coisa: política territorial. Essas observações vão ao encontro do que Anhaia Mello afirmava sobre o urbanismo e o urbanismo americano, vejamos a seguir.
Anhaia Mello talvez seja o que mais tenha sofrido influência americana. Segundo ele:
“Os americanos compreendiam admiravelmente o problema urbano, procurando sempre formar ‘um ambiente favorável às grandes realizações de remodelação e extensão urbana, às grandes operações de alta cirurgia estética exigida pela haussmannização das cidades xadrez’.
Os pesadelos dos urbanistas – o automóvel e o arranha-céu -, os verdadeiros ‘mata-paus’ da cidade moderna, desenvolveram-se de forma extraordinária nos Estados Unidos. O Skycraper agravou de tal forma o problema da circulação nas cidades que foi quase um milagre a conquista integral do território norte-americano pela arte e ciência do urbanismo.
O urbanista valorizava no modelo americano a participação da opinião pública na elaboração dos planos urbanísticos. ‘É de importância excepcional que o público em geral tenha uma noção perfeita e exata daquilo que a cidade deve e pode ser e qual o verdadeiro fim da vida urbana’. Os americanos haviam compreendido que o urbanismo não é apenas questão técnica ou de administração, mas é essencialmente uma questão de educação. (Anhaia Mello, apud Somekh, 1997). (p.114)
Segundo Somekh (1997), o próprio Código de Edificação de São Paulo de 1929, era uma reprodução não nominada de um zoning ao estudo americano.
Para Somekh (1997),
“Os desenhos do Plano de Avenidas, de 1930, de Prestes Maia, também não fugiam à estética haussmanniana, embora sua aplicação tenha se aproximado muito mais do zoning americano. A concepção de Prestes Maia apresentava uma diferença básica em relação a Haussmann na possibilidade de verticalizar e, nesse sentido, foram modelos explícitos do urbanista os arranha-céus de Nova York e o urbanismo da Escola de Chicago.” (p.113).
Segundo o estudo produzido pela The International City Managers Association, de Chicago[4], no ano de 1948, publicado no Brasil pela Fundação Getúlio Vargas, em colaboração com a Missão Norte Americana de Cooperação Econômica e Técnica – USAID – Aliança para o Progresso, o primeiro passo para o planejamento de uma cidade
“... é conhecer as razões de sua formação, localização e ininterrupta existência e desenvolvimento. Atuarão no futuro as mesmas fôrças (sic.) responsáveis pelo desenvolvimento do passado? Acha-se eia (sic.) bem localizada para preencher suas funções atuais? Deseja a população que ela continue a ser o mesmo tipo de cidade que sempre foi? Estarão os munícipes interessados, acima de tudo, numa cidade onde seja agrafável viver e conveniente fazer negócios ou tolerarão uma cidade que proporcione, sobretudo, oportunidades para a especulação imobiliária de propriedades residenciais, comerciais e industriais? Eis as indagações básicas a que responderá a coletividade e que constituirão as diretrizes do planejamento[5]. (p.4, grifo nosso).
O estudo aponta que as dificuldades de elaboração de uma resposta que represente a opinião pública cristalizada, assim que tiver começo o planejamento. No entanto, segundo o estudo, o “... planejador hábil saberá usar os problemas e questões que surgirem como meios de ajudar os moradores da cidade a definir e esclarecer em que espécie de comunidade desejam vê-la transformada” (p.4).
Para Somekh (1997),
“Nos Estados Unidos, lembrava Anhaia Mello, existiam associações do comércio e da indústria que lutavam pelas suas cidades. Em São Paulo, associações idênticas, prestigiosas e ricas, não saíam do circuito das suas respectivas finalidades para dedicar parcelas de seu esforço e recursos ao progresso da cidade.” (p.114).
Nos Estados Unidos, a legislação estadual é que autoriza os governos locais a exercerem os poderes relacionados com o planejamento, o zoneamento, os loteamentos e a aceitação de logradouros. Dessa forma, para que uma comunidade possa iniciar o seu planejamento, deve ela receber do Estado delegação de poderes competentes. Tais poderes são normalmente concedidos às comunidades mediante a promulgação de leis autorizativas estaduais. Somekh (1997), comentando a obra de Anhaia Mello que tece reflexões sobre a tradição dos Estados Unidos em planejar, afirma que
“... o legislativo municipal tem o poder de regular e restringir usos comerciais e industriais, dividindo a cidade de forma conveniente para estabelecer esses usos. É o município que também define a altura e o volume dos edifícios e as relações entre áreas livres e construídas. Esses regulamentos deveriam ser organizados de modo a diminuir o congestionamento das ruas e adequar o caráter das edificações de acordo com o valor do terreno, racionalizando o seu uso, a fim de conservar o valor dos edifícios e estabilizar o preço dos terrenos nos diferentes distritos.”. (p.115).
Para Anhaia Mello, o sucesso do zoning americano, além desses instrumentos que o flexibilizavam, dependeu também do preparo preliminar do ambiente e da opinião pública, que lhe asseguraram legitimidade. ‘O urbanismo exigia a colaboração de todos’. (Costa, p.115).
Segundo, ainda, Anhaia Mello, as administrações e os governos passam; os administradores e governantes se sucedem, são humanos e não têm muitas vezes as mesmas ideias e as mesmas opiniões. Portanto, o desenvolvimento da cidade não poderia estar sujeito a essas contingências. Dirigir as grandes cidades modernas não é fazer leis às centenas, criticava Anhaia Mello. Os serviços e as atividades urbanas não são governo, são negócios. Ou seja, estão envolvidos, segundo Anhaia Mello, em atividades de construção, calçamento, serviços coletivos, água, luz, gás e esgoto. Anhaia Mello relutava em chamar de governo as atividades anteriormente descritas. Uma comissão de planejamento é, pois, para Anhaia Mello, a diretoria da grande empresa de negócios públicos locais, que é a cidade.
A obra Model Laws for Planning Cities, Countries and States[6], recapitula a experiência alcançada com a legislação pioneira de planejamento, estabelece os princípios objetivos do planejamento e contem modelos de leis para planejamento municipal que serviram de inspiração para Anhaia Mello elaborar as suas reflexões. Assim, segundo os modelos sistematizados por Basset, Williams, Bettaman & Whitten (1935), a comissão municipal de planejamento deveria constituir-se de cinco ou mais membros, sendo a maioria designada pelo chefe do executivo da municipalidade. Além do próprio chefe do executivo, seriam frequentemente incluídos na comissão um membro do legislativo e, não raro, representantes dos órgãos de outras municipalidades ou, no caso americano, também os condados. O representante do executivo constituir-se-ia em um elemento de ligação entre a comissão de planejamento e os vários departamentos da Prefeitura e o público em geral.
O mesmo argumento se aplica quanto aos representantes do governo do condado, quando tiver sido concedida à municipalidade competência para o planejamento extraterritorial.

Para Anhaia Mello, segundo Somekh (1997),
“... o urbanismo tinha por finalidade assegurar a utilização mais eficiente da terra, extrapolando a questão meramente urbana. Deveria-se encarar a questão de forma ampliada em termos regionais ou unidades econômicas completas, excedendo o limite administrativo do município: ‘Americanos e ingleses não dizem apenas town planning ou city planning, mas land planning e development planning, que são as denominações verdadeiras. Urbanismo define um setor da ciência, e setor muito limitado e dependedente: a urbs.” (p. 116).
Nas palavras de Anhaia Mello, os americanos viam a terra como um bom investimento. Todos os problemas urbanos, conclui Anhaia Mello, agravados pelo dinamismo e rápido crescimento das supercidades modernas nascem do uso atual ou potencial dos terrenos. O fim da economia da terra urbana é justamente a exata utilização deste.
Anhaia Mello esta dialogando, nesse momento, com o processo de organização do empresariado da construção civil em São Paulo. A posição de Anhaia Mello quanto aos problemas urbanos pode ser compreendida tanto por sua formação como engenheiro-arquiteto no curso da Escola Politécnica de São Paulo quanto por sua posterior atividade como professor de Arquitetura e Urbanismo nessa escola e, depois, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Assim, apresentava uma visão da arquitetura integrada aos problemas urbanos e, consequentemente, da habitação inserida no plano urbanístico.
A primeira grande firma construtora que teve atuação em São Paulo foi a organizada por Francisco de Paula Ramos de Azevedo. Depois de terminados seus estudos de arquitetura em 1878, na Bélgica, começou seus trabalhos na cidade de Campinas, indo para São Paulo em 1886 a convite do governador da Província. Lá inicia uma verdadeira remodelação da cidade, principalmente dos prédios públicos, e logo passou a se chamar Escritório Técnico Ramos de Azevedo (1907-1928). Essa denominação permanece até a morte de Ramos em 1928, quando passa a se chamar Severo & Villares – nomes dos sócios de Ramos: o português Ricardo Severo e o engenheiro Arnaldo Dumont Villares -, até 1938, e depois, Severo, Villares & Cia. Ltda.
Ramos de Azevedo é figura central para analisarmos as origens da organização empresarial da construção, podendo-se afirmar que ele foi o primeiro grande empresário da construção civil na cidade de São Paulo. Além de ser conhecido como arquiteto, ele se notabilizou também como construtor e empresário com participação em vários empreendimentos, principalmente aos negócios imobiliários, e até mesmo político com uma passagem relâmpago pelo Senado, no período de 1904 a 1905, quando renunciou. (Carvalho, p.9).
Evidentemente sua atuação, seja como sócio ou proprietário, em diversas empresas, como a participação na Cia. Melhoramentos de São Paulo (1889), em que se “propunha a negociar terrenos e casas nesta capital ou em seus subúrbios, empreitando, fazendo hipotecas, empréstimos e corretagens em geral; atuação como chefe da Carteira Imobiliária do Banco União de São Paulo em 1890. Assume a Vice presidência da Companhia Iniciadora Predial desde a sua fundação em 1908; cria juntamente com sócios a Cerâmica Vila Prudente, em 1910. Participa, ainda, da Cia. Suburbana Paulista (1913), que vendia lotes situados no Butantã e Osasco para os hortelãos, leiteiros e também uma parte para casas de campo e uma zona industrial”, era proprietário, ainda, da Serralheria Central, que fabricava esquadrias e fornecia madeiras. (Carvalho, p.9-10).
Todas as investidas empresarias de Ramos de Azevedo, devidamente articuladas, fazia-o um agente notável no setor em seu período de atuação, tendo condições de movimentar o mercado imobiliário, promover a urbanização de áreas ainda não ocupadas; facilitar o acesso a materiais e equipamentos até então disponíveis nos centros mais sofisticados e obter um avanço qualitativo na construção das edificações. (Carvalho, p.10).
Ramos de Azevedo controlava uma espécie de holding, um conjunto de organizações envolvidas com as várias etapas do construir; conforme seus negócios prosperavam, as funções de arquiteto e empresário se superpunham, com a predominância da última, resultando seu afastamento gradual da prancheta. (Gitahy e Pereira, p. 55).
Segundo Gitahy e Pereira (2000),
“São Paulo vivia, na virada do século XIX para o XX, um momento importante, deixando de ser simples entreposto rural para iniciar sua escalada econômica, mostrando as primeiras características de sua futura escala metropolitana. Uma série de transformações mexeu com a vida da cidade. O intenso surto construtivo promovido pela circulação do capital da economia do café, o crescimento populacional e a necessidade de dar à cidade uma imagem moderna, inspirada nas cidades européias, com saneamento e urbanização, promoveram o desenvolvimento de um personagem atuante na produção do espaço urbano: a empresa construtora, que vai executar na prática as novas exigências requeridas pela cidade.” (p.55).
Concluí-se, preliminarmente, que na primeira metade do século XX, com o grande surto de construções, advêm as primeiras firmas especializadas no setor de construção civil. (Souza, p.81). Contudo, as empresas nacionais, ainda incipientes, eram pouco capacitadas tecnologicamente para a execução de grandes obras, dando espaço para a atuação de empresas construtoras estrangeiras, como a Hugh Cooper e a dinamarquesa Cristian & Nielsen. (Gitahy e Pereira, p. 55).
Até as décadas 1930-1940, pode-se considerar que o mercado era dominado quase totalmente por empresas construtoras que tinham duas características principais: a relação estreita com o poder público, sobrevivendo quase exclusivamente do paternalismo estatal, e a presença da figura do engenheiro civil na direção dessas empresas, quase não havendo arquitetos à frente de grandes empresas. (Pinheiro, p.35).
Não podemos deixar de frisar que, a participação da iniciativa privada como promotora da construção civil foi impulsionada a partir de 1850 com a promulgação da Lei de Terras[7]. A criação de um mercado imobiliário regido pelo capital privado, uma vez que essa lei preparava a institucionalização do trabalho assalariado – ou o desenvolvimento do capitalismo - , que substituiria a mão de obra escrava, ao espoliar o trabalhador livre do seu meio de sobrevivência: a terra. (Deák & Schiffer, p.16). Assim, forçou o trabalhador sem acesso à terra vender a sua força de trabalho para adquirir o que lhe era necessário, incluindo, logicamente, a terra como lugar de moradia.
Somando-se a essa espoliação, os melhoramentos em São Paulo são intensificados na virada do século, com instalação de água e esgoto, transporte, iluminação pública – empresa Light and Power – e abertura de novos bairros – pela Cia. City Empreendimentos -, produzindo valorização imediata das áreas beneficiadas com essa infraestrutura.
Consolida-se, assim, um ambiente convidativo para os capitalistas investirem seus  recursos em terras e na construção civil, tendo oportunidades de lucrar com o ainda incipiente mercado imobiliário paulistado.
Segundo Souza (1994),
“O solo urbano passou, então, a ser objeto de transações lucrativas, por força da urbanização, da valorização de obras urbanas e do desenvolvimento dos serviços de infraestrutura. Formaram-se, assim, instituições financiadoras, como as sociedades de capitalização e os bancos de crédito hipotecário, também chamados de crédito real, que, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, iriam estimular a transformação de grandes áreas em bairros residenciais (os bairros-jardins, bem como a construção de edifícios de apartamentos e de escritórios comerciais, difundindo-se, por conseguinte, as formas capitalistas de organização do setor.” (p.81-82).
A onda industrializante gerada pelo governo de Getúlio Vargas, a partir de 1930, veio acompanhada da necessidade de se prover infraestrutura urbana viabilizada por meio de legislação urbana e criação de caixas econômicas e fundos de investimentos.  O subsetor de edificações teve que buscar alternativas para manter o seu rítimo de ganhos imobiliários, pois passou a sofrer diretamente intervenções da política varguista. A Lei do Inquilinato de 1942[8] depreciava a solução da moradia de aluguel, até então a melhor opção de investimento nos anos 1930 e início dos 1940 no mercado imobiliário habitacional, e força a migração dos empreendimentos imobiliários para a organização de incorporações e a proposta de condomínios verticais.
Este cenário que se estrutura nas décadas seguintes, se chocava com o arcabouço teórico acumulado por Anhaia Mello e Prestes Maia em anos de acompanhamento da produção intelectual anglo-americana e francesa, principalmente, relativo ao planejamento urbano. Desse contato, surgirão propostas que se cristalizaram na cidade de São Paulo, principalmente após a vigência do Código de Edificação de 1929, como vimos, uma reprodução não nominada no zoning ao estilo americano.
Entretanto, como dito anteriormente, será na década de 1950 - quando São Paulo assume a condição de primeira metrópole brasileira -, que e as abordagens até então utilizadas para dar respostas aos problemas urbanos tornaram-se praticamente insuficientes ao urbanismo paulistano. Nesse sentido, a análise do embate de ideias travado por Luiz de Anhaia Mello e Francisco Prestes Maia permite-nos aprofundar os pontos de disputa teórica e compreendermos a gênese do desenvolvimento de duas concepções da metrópole presentes, ainda hoje, no pensamento urbanístico paulista. Como vimos, outras correntes foram sem dúvida se incorporando a esse processo, mas é perfeitamente perceptível a presença de duas vertentes, uma ligada aos pressupostos defendidos por Anhaia Mello e a outra a Prestes Maia.
O nosso ponto de partida será a carta de princípios “O Plano Regional de São Paulo”, elaborada por Anhaia Mello e dirigida ao estudo de um “Código de Ocupação Lícita do Solo” do ano de 1956. O objetivo de Anhaia Mello era o de produzir um manifesto baseado em inúmeras citações de urbanistas, sociólogos, geógrafos, filósofos e políticos consagrados. Ele parte da tese de que a Revolução Industrial gerou cidades nas quais a distribuição das populações no solo está errada, é desumana e antissocial e, por assim ser, é necessário a produção de um urbanismo humanitário que encaminhe soluções novas.
Já no início do documento, Anhaia Mello lança suas farpas contra aqueles que ele aponta como ultrapassados por não considerarem a questão urbana nas suas reais dimensões:
“ (...) é preciso considerar o problema urbanístico regional, que não se resolve com avenidas, viadutos e pracinhas ajardinadas. Se urbanismo é arte de correlação e integração – problema de função, de textura, de economia (sic.) e síntese estética – só pode ser realmente praticado no plano regional e na maior de suas regiões – a Nação”.[9]
A Revolução Industrial, para Anhaia Mello, desorganizou a unidade geográfica da cidade, que é a região, que, agora, precisava ser vista com abrangência espacial para que o equilíbrio fosse reintroduzido na realidade urbana. Forjou-se, para ele, uma nova ordem de grandeza que possui como extremidades de um mesmo sistema a região e a casa. Nas palavras de Anhaia Mello, “grandes planos regionais e pequenos planos de vizinhança se completam e se integram”[10].
A proposta de Anhaia Mello compreende, portanto, que a cidade está englobada nestas duas novas dimensões limites, a região e a casa, e em nenhum trecho do documento é encarada como unidade base de planejamento. Para ele, a cidade deveria ceder espaço ao município “verdadeira dimensão de pesquisa, conhecimento e atuação”[11].
A convicção de Anhaia Mello em promover essa necessária alteração era fruto de sua participação no encontro da União Internacional de Arquitetos, realizado na Grécia em 1954, onde segundo seu depoimento reafirmaram-se os princípios da Carta de Atenas de 1933. A Carta de Atenas foi um produto do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado na cidade de Atenas no ano de 1933. Naquele momento, concluíram que uma aglomeração constitui o núcleo vital de uma extensão geográfica cujo limite é definido pela zona de influência de uma outra aglomeração. Ou seja,
“Suas condições vitais são determinadas pelas vias de comunicação que asseguram suas trocas e ligam-se intimamente à sua zona particular. Só se pode enfrentar um problema urbanístico referenciando-se constantemente aos elementos constitutivos da região, principalmente, a sua geografia, chamada a desempenhar um papel determinante nessa questão: linhas de divisão de águas, morros vizinhos desenhando um contorno natural confirmado pelas vias de circulação, naturalmente inscritas no solo. Nenhuma atuação, pode ser considerada se não se liga ao destino harmonioso da região. O plano da cidade é só um dos elementos do todo constituído pelo plano regional.”[12]
Na sua carta de princípios, Anhaia Mello reproduz parte do documento produzido no encontro internacional, transcrevendo-o diretamente em francês:
“Il est sonhaitable, pour les pays qui se trouvent em plein dévé lopement que l’étude des problèmes speciaux d’une ville ou d’une agglomeration, procede toujours à la suíte d’une conception plus générale: c’est à dire que l’étude de l’aménagement regional fournirá le plan directeur, suivant les études speciales des agglomerations de cette region”.[13]
Partindo do geral para o particular, do macro para o micro urbano, Anhaia ocupava-se inicialmente com o que ele denominava “Plano Nacional’. A sua principal meta é a harmonização dos cinco planos regionais, das cinco regiões geo-econômicas do país: norte, sul, leste, nordeste e centro-oeste. A autoridade responsável pela organização seria, obrigatoriamente, a federal. No entanto, Anhaia recomendava a criação de um órgão sem atribuições administrativas, idêntico ao americano National Planning Bureau – NPB criado no governo Roosevelt[14]. Este seria constituído por sete membros, um representante de cada região geo-econômica e mais dois, escolhidos diretamente pelo Presidente da República. A tarefa do CNU deveria ser a de coordenar, dar sequência, facilitar a cooperação e correlacionar esforços nos planos federal, estadual e municipal. Seria também atribuição do Conselho Nacional de Urbanismo compatibilizar e opinar sobre os planos setoriais e as porcentagens da receita tributária reservada pela União para estes planos.
No entanto, a simples transposição dessa estrutura organizacional administrativa do governo Americano voltada para o planejamento urbano nacional para a realidade brasileira não seria tão simples. Segundo Anhaia Mello, no Brasil o maior desiquilíbrio estrutural dizia respeito aos resultados do censo demográfico de 1950 elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, que revelaram dados importantes sobre o eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Segundo informações do referido censo de 1950, transcritas para a Carta de Princípios  de Anhaia Mello
“Rio-São Paulo representam apenas 3,4% da área do território nacional; entretanto aí se encontram 68% da produção industrial brasileira; 70% do potencial de energia elétrica instalada, 58% dos operários empregados na indústria.”[15] (p.10)
Estes números, que apontavam já em 1950 para a formação do primeiro macro-eixo econômico do Brasil, com duas megalópoles nos pólos extremos, são diagnosticados pelo Plano Regional como uma anomalia, pois o mesmo censo de 1950 também apontava um país rural.
“Com uma população de 51.944.397 habitantes, sendo 33.161.506 habitantes rurais (64%) da população e 18.728.891 habitantes urbanos (36%) a sua distribuição no território nacional é” (...) considerada por Anhaia Mello “(...) extremamente preocupante.”[16]
As constatações de Anhaia Mello se baseiam na tabela transcrita de sua proposta de Plano Regional:


Tabela 1. Brasil - distribuição habitacional no território em 1950.
Superfície 1.000 Km2
Habitante por km2
Brasil
8.464
6,14
Norte
3.540
0,52
Maranhão
332
4,77
Piauí
249
4,19
Bahia
563
8,58
Minas Gerais
581
13,28
São Paulo
247
36,00
Rio de Janeiro
41
55,00
Fonte: Censo demográfico de 1950, IBGE. Tabela extraída do Plano Regional de Anhaia Mello, p.10.1954.
Como podemos constatar na Tabela 1. Brasil – distribuição habitacional no território em 1950, o desequilíbrio é manifesto. Anhaia Mello aspirava mudar este quadro. Não identificamos, no entanto, na sua proposta de Plano Regional um encaminhamento claro desse problema.
Já em 1954 Anhaia Mello havia percebido com clareza a artificialidade da autonomia municipal, conforme podemos observar na Tabela 2.  Brasil - distribuição geral dos tributos em 1951. Nesse sentido, ele encaminha proposta de reforma constitucional no sentido que se fizesse “uma diferente discriminação de receitas, na qual o Município seria aquinhoado na proporção de suas responsabilidades”. (Plano Regional, p.13).
Tabela 2.  Brasil - distribuição geral dos tributos em 1951.
Ente federativo
Porcentagem
União
51,67
Estados
36,95
Municípios
11,38
Fonte: Censo demográfico de 1950, IBGE. Tabela extraída do Plano Regional de Anhaia Mello, p.12.1954.

Passando, agora, para a esfera estadual, o autor faz sua primeira incursão no assunto mais polêmico da sua proposta de Plano Regional. Segundo Anhaia Melo,
“A tese da limitação do crescimento é incontestável. Desagrada a muita gente, porque põe termo a muita exploração imobiliária, a muita fortuna fácil – mas sociedade é uma organização sob uma autoridade”[17].
A tese da limitação do crescimento representava em 1954 uma verdadeira provocação, pois ser uma das cidades que mais crescem no mundo era mais que um lema, era uma meta a ser sustentada e ampliada pelas administrações municipais paulistanas da época. A despeito de a proposição de Anhaia Mello ter ganhado alguns adeptos, lançou uma nuvem escura sobre as vantagens constantemente alardeadas do crescimento sem limites.
O Plano Regional ainda propõe:
1) elaboração do Plano Estadual;
2) obrigatoriedade de organização de planos para os municípios a partir de um determinado nível de população;
3) criação do conselho Estadual de Urbanismo (CEU);
Para lidar com os problemas comuns aos municipios, propõe-se a criação da COPRISP, Comissão do Plano da Região Industrial de São Paulo. A atribuição nuclear desta comissão tinha por objetivo controlar o crescimento dos municípios. Segundo proposta do Plano Regional de Anhaia Mello a COPRISC teria a função de:
a) proibir novas indústrias no Município da Capital;
b) incentivar seu estabelecimento em outros municípios;
c) melhorar as condições das pequenas cidades;
d) fundar novos núcleos do tipo cidade jardim;
e) criar trading-states.[18]
Além de uma clara política de reforço das cidades pequenas e médias em detrimento do crescimento sem controle da metrópole, Anhaia Mello empunha a bandeira da descentralização industrial.
Segundo Anhaia Mello,
“(...) não é possível adiar a eclosão de uma campanha em prol da descentralização da indústria no Brasil na qual se empenham as classes produtoras e os poderes governamentais do Município, do Estado e da União.
A descentralização proporcionará melhor proteção ao parque industrial na eventualidade de uma guerra. Significará o descongestionamento das metrópoles com a consequente suavização das agitações sociais que fervem em decorrência das inúmeras aflições que torturam os seus habitantes”[19].
A despeito da ingenuidade de Anhaia Mello sobre as origens dos conflitos sociais, os demais pontos apresentados revelam a sua perfeita sintonia com as correntes urbanísticas europeias. As cidades novas inglesas da primeira geração de urbanistas – Harlow, Stevenage, Hemel Hampstead, Basildon -, ditavam as regras: população controlada em torno de um número considerado ótimo; crescimento sob a égide de um plano; e setor industrial circunscrito.
Ao tecer suas recomendações sobre a esfera municipal, Anhaia Mello conforma as disposições anteriores elaboradas pela primeira geração de urbanistas ingleses:
“1. limitar o crescimento da conurbe paulistana; 2. rearticular a população da conurbe com as respectivas atividades, relacionando de novo “folk, work and place” e reequilibrando as quatro funções: residência, trabalho, recreio e circulação e os dois ritmos – o humano (4 km) e o mecânico (100 km) ou o cotidiano e o intermitente; 3. regular e limitar o crescimento de todas as cidades e vilas da área regional. As maiores como Santos, Campinas e Santo André devem estacionar, melhorar o standard de vida em vez de crescer mais; 4. criar novas cidades tipo cidade jardim em sítios a determinar; 5. criar trading-estates; 6. reorganizar  técnica, econômica  espiritualmente toda a área rural da região; 7. conservar o primeiro, tornando-o acessível para o recreio e comunhão com a natureza, revigoramento físico e espiritual das populações regionais”[20]
As reflexões de Anhaia Mello sobre a cidade deixam claro o seu compromisso com a cidade existente. Suas recomendações apontam constantemente para a limitação forçada de seu crescimento por meio de fatos exteriores de planejamento orgânico e criador. O ciclo de crescimento das cidades, segundo Anhaia Mello, pode ser revertido recorrendo-se à concepção regionalista de desenvolvimento e à polinucleação. No entanto, aponta que a cidade da “era biotécnica” é antes de tudo uma cidade regida por normas precisas e democráticas, pois
“(...) não se pode ocupar o solo de um país sem regra. É preciso estabelecer um Estatuto do Terreno ou Código de Ocupação Lícita do Solo[21].
As denominadas boas regras de ocupação do solo são retiradas por Anhaia Mello, direta e literalmente, do texto Propos D’Urbanismo, de Le Corbusier, citado em fracês:
“1. Il faut, tout d’abord Donner une echélle sensible aux plans: l’heure de marche à pied revèle mieux l’emploi du sol que les echélles numeriques abstraites; 2. Satisfaire à La revendication: soleil, espace, verdure; 3. Fixer le rapport de La surface batie à la urface libre; 4. Dicter lês densités qui determineront l’usage ET La qualité dês zones baties (IFS); 5. Adméttre la limitation du perimètre maximum de la ville; 6. Preparer La reabsorption progressive dês residus parasites ET maladies dês villes: les banlieues”[22].
De todos os pontos apresentados e chancelados por Anhaia Mello, somente o de número cinco revela uma preocupação com a cidade existente, na medida em que propõe a limitação de um perímetro máximo para as cidades. Anhaia Mello, citando L. Munford, é categórico:
“(...) novas cidades e diferentes deverão ser criadas por uma geração mais decidida e mais humana, menos fascinada pelos falsos deuses das finanças”[23]
As novas cidades, assim, deveriam possuir um desenho que respeitasse pelo menos três quesitos:
“1. A cinta verde para limitação da extensão da cidade e abastecimento de fresh food; 2. A superquadra que permite a convivência pacífica do automóvel e; 3. A unidade de vizinhança que permite a rearticulação social e comunitária da urbes”[24].
Além de apostar na superquadra e na unidade de vizinhança, Anhaia Mello, seguindo as teses do urbanista inglês Ebenezer Howard (1850-1928), afirma ser fundamental que a terra seja mantida como propriedade pública. Segundo Anhaia Mello,
“(...) ninguém desconhece a imensa valorização que se produz na transformação do terreno rural em urbano. Não é menor a valorização produzida no terreno urbano pelo aumento da população, desenvolvimento do comércio e indústria, realização de obras públicas e grandes reformas urbanas.
Essa valorização é caracteristicamente um unearned increment porque não depende de esforço do proprietário, mas corresponde a trabalho coletivo. Para a coletividade deve pois reverter, e o meio mais prático de fazê-lo é conservar a terra como propriedade pública, arrendando os terrenos por prazos longos aos interessados. A importância dessas locações, renovadas a cada 5 ou dez anos, é suficiente para a realização e manutenção dos serviços públicos e para melhoria crescente di standard de vida urbana”[25].
Ao finalizar o documento, Anhaia Mello, para legitimar suas proposições, debruça-se sobre um exemplo considerado bem sucedido – o Plano de Chicago – produzido por E. Grunsfeldo e L. Wirth[26]. O Plano Metropolitano de Chicago foi bem sucedido por, principalmente, segundo Anhaia Mello, ter incluído a região sobre a qual Chicago exerce uma influência significativa no quadro de planejamento.
Segundo Anhaia Mello, a base do plano é
“(...) um sistema moderno e eficiente de transporte para toda a região; transporte ferro, rodo, hidro, aeroviário, transporte rápido de massa e local – tudo integrado. Os veículos circulam por superhighways, depressed ou elevated, menos o lake-shore que é de superfície – e por onde se escoa a circulação rápida e geral (...) A grande metrópole será dividida em 70 comunidades locais de vizinhança de 5.000 habitantes cada uma (...), cada comunidade de 50.000 habitantes se constitui de 10 unidades de vizinhança, de 5.000 pessoas cada, com equipamento social completo, o que dá a cada uma uma autonomia perfeita.[27]
O exemplo do plano urbanístico de Chicago, elaborado por Grunsfeld e Wirth em 1960, é a última referência feita por Anhaia Mello no documento apresentado como uma conferência pronunciada em comemoração do Dia Mundial do Urbanismo em 8 de novembro de 1954.
Embora o texto de Anhaia Mello faça referência a diversas teorias, de Le Corbusier à Lewis Mumford, de Ernest Burguess[28], de E. Howard à Clarence Perry[29], apresenta a tese essencial que a teoria e a prática do urbanismo repousam na possibilidade de se promover a descongestão das metrópoles modernas. A retração das dimensões urbanas é o foco em torno do qual giram todas as propostas. A convicção de que existe um tamanho ótimo para as cidades, sustenta a sua teoria da congestão.
Nesse sentido, Anhaia Mello propõe um patamar de desenvolvimento da cidade em que a região industrial teria um raio de 100 km, uma população de quatro milhões, e área de 30.000 Km2 incluindo 40 municípios. A intenção da proposta seria que a metrópole ficasse estacionada nesse ciclo. Para tanto, Anhaia Mello investirá suas reflexões na elaboração de mecanismos para conter o crescimento e a velocidade da mudança de metrópole para megalópole. Para alcançar tal objetivo, sua principal tese no plano intermunicipal consiste na forte obstrução de instalação de novas indústrias dentro do município da capital. O objetivo último dessa proposta era o de conter dois males urbanos: a expansão desordenada dos centros urbanos e o estrangulamento da economia industrial.
A grande oposição de que se tem registro à reversão do ciclo metropolitano proposto por Anhaia Mello no seu Plano Regional para São Paulo partiu de Francisco Prestes Maia. Com a tarefa de relatar o trabalho de Anhaia Mello à Comissão Orientadora do Plano da Cidade, Prestes Maia serve-se da circunstância para elaborar longas considerações sobre o estágio em que encontrava o adensamento urbano paulistano. Prestes Maia foca suas críticas à proposta de contenção e retração do crescimento urbano defendida por Anhaia Mello[30].
Segundo a COGEP (1981), Coordenadoria Geral de Planejamento, no volume Prestes Maia reconhecia que as grandes cidades estavam enfrentando “inconvenientes”, no entanto, afirma pragmaticamente no relatório O Planejamento Urbano na Cidade de São Paulo: contribuições para recuperação de sua memória (1900/1071):
“(...) não aceitamos entretanto a solução, hoje um tanto em moda, ( se não na prática ao menos na doutrina) da ‘fixação’ ou ‘congelamento’ das grandes cidades. Isso por muitas razões, como abaixo enumeramos, e mais por esta, que a ‘fixação’ (salvo casos extremos ou de cidades jardins novas, predeterminadas) não é a única solução, antes será uma solução simplista, derrotista e maltusianista, havendo entretanto outra muito mais natural da adaptação, organização, correção e recuperação de atrasos, contra o qual os argumentos que temos encontrado não são convincentes e, muitas vezes, são mais interjectivos do que técnicos (...) Só o caso das indústrias complementares e subsidiárias, às quais a convizinhança é necessária, bastaria para levantar objeções sérias ao caráter absoluto da tese. Para tão rigorosa proibição precisaria mostrar que não hã mais espaço disponível, nem esperança de abastecimento, de despejo, de energia, de habitações, etc., no município (...) Pode haver dificuldades no momento, porém removíveis mediante planos, novas obras, abastecimento, etc., como aliás é usual nas cidades.” (p.28).

O debate travado por Anhaia Mello e Prestes Maia está inserido no contexto característico nos anos 1950 nos países periféricos. Em outras palavras, a questão que se colocava como pano de fundo para as reflexões de ambos era a organização e o porte da metrópole industrial paulistana dentro de um país em desenvolvimento. O acelerado processo de urbanização pelo qual o Brasil estava passando, para Anhaia Mello, colocava como fundamental a reversão do ciclo metropolitano por meio da utilização da concepção teórica da cidade-jardim  - assim como fora utilizado em Londres -, como forma de controlar a expansão metropolitana desenfreada. Anhaia Mello defendia que a formação de uma federação de pequenas cidades seria o contraponto às megalópoles e à concentração, concepções centrais apresentadas por E. Howard no livro Garden Cities of Tomorrow.
No outro extremo desse debate, Prestes Maia, sintonizado com as teorias desenvolvimentistas dos anos 1950, é bastante crítico com relação à “extrema dramatização e as vezes verdadeiro histerismo”, nas suas palavras, com que se referem às condições da vida urbana. Segundo seu ponto de vista, a adaptação da cidade às novas dimensões e demandas passa por uma intervenção na cidade existente. Suas teses fundamentavam-se, principalmente, no período em que esteve à frente da Prefeitura Municipal de São Paulo, pois essa experiência trouxe-lhe a certeza de que os problemas urbanos seriam resolvidos, basicamente, com um plano de obras que atualizasse a cidade e a habilitasse a responder às novas demandas. Anhaia Mello elaborava uma série de críticas ao planejamento reformador do ex-prefeito paulistano. Por outro lado, a argumentação de Prestes Maia é sempre feita no sentido de se esgotarem as potencialidades da metrópole, de se buscar equacionar de “forma econômica”, nas suas palavras, as dificuldades assinaladas. O problema da energia e da água, apontados por Anhaia Mello como justificativa à descentralização industrial, são rebatidos por Prestes Maia como questões passíveis de solução simples, uma vez que as transmissões em alta tensão, no caso de energia, efetuam o fornecimento de forma eficiente mesmo a grandes distâncias, com significativa redução de custos.
Quanto ao problema do transporte público, em 1950 já em crise, é analisado por Prestes Maia e origina uma solução tríplice: a) o melhoramento do sistema superficial existente; b) o recurso às linhas rápidas e vias expressas; c) organização dos bairros de acordo com os princípios de “unidade de vizinhança” e de “zoneamento”.
Em apenas um ponto existe uma confluência entre os dois urbanistas. Assim como Anhaia Mello, Prestes Maia declarava-se favorável ao incentivo de estabelecimentos industriais em outros municípios, desde que devidamente preparados. No entanto, apresenta uma observação aos resultados que esse processo poderia provocar, pois, segundo ele, “os males da capital, que constituem objeção à presença de indústrias, frequentemente se reproduziriam no interior. A maioria das cidades do Estado também não tem energia, não tem água, não tem despejos.”[31]
A ideia preconizada por Anhaia Mello de que só é possível um Plano Diretor mediante a fixação da população é motivo de nítida divergência entre os urbanistas. Segundo Prestes Maia a questão é outra,
“O plano Diretor não precisa ser estático, mas deve ser dinâmico, não tanto um projeto cristalizado, mas uma nova ação. As reformas, as cirurgias, as remodelações de serviços, fazem parte dos processos normais de crescimento e de obsolência (sic.) funcional: não vemos razão para temer cirurgias periódicas e prudentes”. (p. 30).
Estamos diante de não apenas um confronto de opiniões sobre a metrópole paulista; estamos diante de duas vertentes do urbanismo e, o que é efetivamente importante, ambas originárias das teorias e práticas do final do século XIX. A normativa, apresentada por Anhaia Mello, que procurava criar espaços novos, paralelos, inteiramente sobre o domínio qualitativo e quantitativo dos técnicos urbanistas alinhada à E. Howard e P. Geddes. A outra, tributária do hausmanianismo, adaptativa e intervencionista representada por Prestes Maia, buscando através de intervenções físicas acomodar e modificar o ambiente urbano todos as vezes que as necessidades novas surgissem.
Não podemos deixar de destacar que, o “Esquema Anhaia Mello”, como classificava Prestes Maia, almejou, acima de tudo, a elaboração de um Código de Uso do Solo Lícito. A sua legitimidade deveria advir de um controle das formas de exploração, ou melhor, da contenção e da especulação do solo urbano. Anhaia Mello pensava ser possível estancar o ciclo de reprodução permanente do capital com a fixação de controles. A congestão e a descongestão são, para Anhaia Mello, fenômenos exclusivamente físicos. Seus significados dentro do sistema econômico, social e político do país não são abordados.
As duas correntes urbanistas apresentam contradições que estão vinculadas ao contexto vivido pelo país. Ou seja, enquanto o Plano Regional para São Paulo buscava propostas para estancar o crescimento do país o país vivia a euforia do desenvolvimento, principalmente, durante o governo de Juscelino Jubitschek com seu plano de metas.
A corrente urbanista forjada no Estado de São Paulo contou, portanto, com a efetiva atuação de Anhaia Mello e de Prestes Maia. Apresenta, ainda, traços da proposta de zoneamento anglo-americana, a proposta das cidades jardim de Howard e os planos de intervenção dos autores franceses Haussmann e de Agache, incorporados, como constatamos, ao longo da formação intelectual/profissional, e, depois, durante a atuação profissional, de Anhaia Mello e Prestes Maia. No próximo subcapítulo, 3.4 Centro de Pesquisa e Estudos Urbanísticos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo: um centro indutor do planejamento urbano no Estado de São Paulo, analisaremos como seu deu a propagação das concepções urbanísticas de Anhaia Mello pelo interior do Estado.


[1] Em livre tradução: Planejamento Territorial nos Estados Unidos para a Cidade, o Estado e a Nação.
[2] Livre tradução: Desenhando as primeiras políticas territoriais.
[3] Livre tradução: Sistema de levantamento nacional.
[4] Esse estudo tinha por objetivo divulgar livros da literature estadunidense no campo da organização, do planejamento e da programação para o desenvolvimento das cidades.
[5] FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Administração para o desenvolvimento (6). Tradução e publicação da Missão Norte Americana de Cooperação Econômica e Técnica – USAID, 1948. Primeira edição em português, janeiro de 1965, por contrato com a USAID.
[6] Edward M. Basset, Frank B. Williams, Alfred Bettaman e Robert Whitten. Harvard City Planning Studies, Volume VIII (Cambridge: Harvard University Press, 1935).
[7] LEI No 601, DE 18 DE SETEMBRO DE 1850. “Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias (sic.) de nacionaes (sic.) e de extrangeiros (sic.), autorizado o Governo a promover a colonisação (sic.) extrangeira (sic.) na forma que se declara D. Pedro II”. Fonte: http://www.planalto.gov.br, consultado em 1o de marco de 2011.
[8] Segundo Viola (2007), a Lei do Inquilinato, de 1942 – que inibe o investimento privado na construção de edifícios habitacionais, congelando o valor dos aluguéis – desestimulou a construção de novas unidades para locação, pois passou a não ter a rentabilidade que tivera outrora, inaugurando uma era de forte crise na área habitacional. O Estado não lançou nenhuma alternativa para a questão, restando à população procurar moradias para compra dentro de suas possibilidades, o que as afastava cada vez mais do centro urbanizado, onde as propriedades tinham um custo inacessível, acelerando a tendência de espraiamento da cidade, mas agora acrescentando um item novo: a precariedade urbana.
[9] MELLO, Luiz Ignácio Romeiro Anhaia. O Plano Regional de São Paulo (Uma Contribuição da Universidade de São Paulo para o Estudo de um Código Lícito de Ocupação do Solo. Universidade de São Paulo, 1954.
[10] Ibidem.
[11] Confirmando esta convicção de Anhaia Mello, em 14 de julho de 1954, através da Lei Municipal no 4494/54, de julho de 1954, a Câmara Municipal de São Paulo por ele orientada, altera a denominação da Comissão Orientadora do Plano de Cidade para Comissão Orientadora do Plano Diretor do Município.
[12] CARTA DE ATENAS. Disponibilizada no sítio www.icomos.org.br pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, consultado em 02 de março de 2011.
[13] Em tradução livre: “É desejável para os países que se encontram em pleno desenvolvimento que os estudos dos problemas específicos de uma cidade ou de uma aglomeração seja sempre em seguida a uma concepção mais geral: ou seja, que o estudo das transformações regionais forneça o plano geral, em seguida aos estudos específicos desta região”.
[14] Em 1933, o Ministério do Interior dos Estados Unidos criou o que chamou de Conselho Nacional de Urbanismo (CNU), que se destinava a planejar ações de obras públicas para os projetos da era da Depressão, como parte do New Deal.
[15] CARTA de Princípios de Luiz de Anhaia Mello – O Plano Regional de São Paulo, p. 10, 1954.
[16] Ibidem.
[17] CARTA de Princípios de Luiz de Anhaia Mello – O Plano Regional de São Paulo, p. 14, 1954
[18] CARTA de Princípios de Luiz de Anhaia Mello – O Plano Regional de São Paulo, p. 28, 1954
[19] Ibidem, p. 21.
[20] CARTA de Princípios de Luiz de Anhaia Mello – O Plano Regional de São Paulo, p. 23, 1954
[21] Ibidem, p.37.
[22] Ibidem, p. 37.
[23] Lewis Mumford nasceu em Nova York. Estudou no City College nova-iorquino e na New School for Social Research. Colaborou em publicações, e seus primeiros textos publicados tanto em jornais quanto em livros, firmaram sua reputação como escritor interessado pelas questões urbanas. Desde a estréia, porém, com "A História da Utopia" (1922), sempre situou seus comentários num contexto amplo, que incluía a literatura, a arte e a ação comunitária como meio para aprimorar a qualidade de vida. Em outras obras (1934-1941), Mumford advertiu que a sociedade tecnológica deveria entrar em harmonia com o desenvolvimento pessoal e as aspirações culturais regionais. Depois de1942, lecionou ciências humanas e planejamento urbano e regional em várias universidades americanas. Fonte: biblioteca virtual Lewis Momford, http://library.monmouth.edu, sítio consultado em 03 de março de 2011.
[24] CARTA de Princípios de Luiz de Anhaia Mello – O Plano Regional de São Paulo, p. 38, 1954.
[25] Ibidem, p.41.
[26] Para RIBEIRO e PECHMAN (1996), o plano urbanístico de Chicago (EUA), elaborado por Grunsfeld e Wirth em 1960, era, segundo Anhaia, um modelo de planejamento adequado e possível para a formulação de um plano regional
[27] CARTA de Princípios de Luiz de Anhaia Mello – O Plano Regional de São Paulo, p. 57 1954.
[28] Durante os anos 1920, Robert E. Park (1864-1944) e Ernest W. Burgess (1886-1966) desenvolveu um programa distinto de pesquisa urbana no departamento de sociologia da Universidade de Chicago. Park e Burgess sugeriram que a luta por recursos urbanos escassos, especialmente a terra, levou a competição entre grupos e, finalmente, a divisão do espaço urbano em distintos nichos ecológicos ou "áreas naturais", em que as pessoas compartilhavam características sociais semelhantes, pois estavam sujeitas as mesmas pressões ecológicas. Assim, a mancha urbana das cidades configura zonas de círculos concêntricos, fundamentais para explicar a organização espacial das áreas urbanas, principalmente no que diz respeito à existência de problemas sociais como desemprego e criminalidade em alguns bairros de Chicago. (Brown, 2009).
[29] Segundo LAMAS (2004), Clarence Arthur Perry estabeleceu a escola primária como equipamento central e o delimitador espacial de uma unidade de vizinhança: ela se estenderia de forma que sua população não ultrapassasse a capacidade de uma escola primária. A unidade de vizinhança é um escalão urbano que se assemelha ao bairro e é resultado da reunião de várias unidades residenciais. Ela foi idealizada como uma resposta ao crescimento dos grupos secundário (característicos das grandes áreas urbanas) de forma que os grupos primários seriam reforçados, através de uma configuração urbana que propiciasse a convivência e os contatos sociais.

[30] O parecer geral coordenado por Prestes Maia foi solicitado pela Comissão do Plano Diretor da Cidade, ou comumente chamado de Plano da Cidade, e contou com pareceres dos seguintes conselheiros membros desta Comissão: Engenheiros Henrique Neves Lefebvre, Júlio Cesar Lacreta e Rogério Cesar Andrade Filho. A COGEP, Coordenadoria Geral de Planejamento, no ano de 1981 organizou todos os pareceres em volume intitulado “O Planejamento Urbano na Cidade de São Paulo: contribuições para recuperação de sua memória (1900/1071)”.
[31] Notas sobre o Esquema Anhaia. COGEP – Dossiê 001/81 – São Paulo, 1955.



Rodrigo Alberto Toledo
Doutorando em Sociologia com período sanduíche na Universidade de Salamanca, USAL, Instituto Iberoamerica e Centro de Estudos Brasileiros, tendo como objeto de pesquisa o processo de planejamento urbano da cidade de Araraquara e sua relação com a FAU-USP e processos participativos na formulação de políticas públicas urbanas. Tem Mestrado Acadêmico em Sociologia e Especialização em Gestão Pública e Gerência de Cidades (2001) pela UNESP-FCLAr-PPG. Licenciatura Plena e Bacharelado em Ciências Sociais pela UNESP-FCLAr. Foi presidente da ONG Araraquara Viva e coordenou inúmeros projetos socioambientais que foram aprovados pelo Ministério da Cultura, Lei Rouanet. É bolsista do programa CAPES.

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